sexta-feira, 11 de setembro de 2009

Nós, os comunistas



Comunistas nós somos porque,
os pés solidamente plantados no dia de hoje,
sondamos do futuro a noite densa
somamos o presente de viver.

Comunistas nós somos porque
ouvimos a classe que murmura
com os sem-vozes lançados ao ataque
formamos uma massa unida como um só e que canta.

Comunistas nós somos porque,
andando sobre a praia nua
quando já sobe o ruído da maré
nós seguimos, desprezando o refúgio.

Comunista nós somos porque,
pesando com justiça os mais e os menos,
sabemos recuar, batalhar na retaguarda,
e partir novamente para a luta.

quinta-feira, 10 de setembro de 2009

A NECESSÁRIA RECONSTITUIÇÃO DA DIALÉTICA HISTÓRICA
István Mészáros


Palestra proferida em 27 de agosto de 2009, na Universidade Federal do Rio de Janeiro, nos marcos do
III Seminário Internacional MARGEM ESQUERDA – Boitempo Editorial.



1.
Como sabemos, o estado moderno não foi formado como resultado de alguma determinação econômica
direta, como um afloramento superestrutural mecânico, em conformidade com uma visão reducionista da
suposta dominação unidimensional da sociedade, como apresentado pela concepção marxista vulgar de
tais questões. Mas sim foi constituído dialeticamente através de sua necessária interação recíproca com a
base material altamente complexa do capital. Neste sentido, o estado não foi apenas moldado pelas
fundações econômicas da sociedade, como também moldou deveras ativamente a realidade multifacetada
das manifestações reprodutivas do capital no decorrer de suas transformações históricas, tanto na fase
ascendente como na decadente de desenvolvimento do sistema do capital.
Neste complexo processo dialético de intercâmbio recíproco as determinações históricas e trans-históricas
foram intimamente entrelaçadas, mesmo que na fase decadente do desenvolvimento do sistema do capital
tivéssemos de testemunhar uma crescente violação da dialética histórica, especialmente sob o impacto da
crise estrutural em aprofundamento. Para a defesa do modo de sociorreprodução estabelecido a todo
custo, não importando o quão esbanjador e destrutivo fosse seu impacto agora até mesmo sobre a
natureza, pode-se apenas frisar o anacronismo histórico e a inviabilidade correspondente de um modo de
sociorreprodução produtiva outrora todo-poderoso, que procura estender seu poder de uma “forma
globalizada” em um tempo em que os limites sistêmicos absolutos do capital estão sendo ativados numa
escala global.
Ademais, o fato de que a fase histórica de imperialismo moderno que costumava predominar
anteriormente e durante a Segunda Guerra Mundial é agora substituído pelo imperialismo hegemônico
global dos Estados Unidos da América, procurando se impor por toda parte como o Estado global do
sistema do capital em geral, não resolve qualquer das contradições subjacentes de forma alguma. Pelo
contrário, pode somente destacar a gravidade dos perigos inseparáveis da crise estrutural do modo de
controle sociorreprodutivo. Pois a imposição de um imperialismo hegemônico global de nosso tempo pelo
poder militar agora dominante não é menos inviável no longo prazo que a tradicional rivalidade
imperialista que produziu duas guerras mundiais devastadoras no século XX. Longe de constituir de
modo bem-sucedido o Estado do sistema do capital em geral, como uma tentativa vã de remediar ao
grande fracasso histórico do capital nesse sentido, o imperialismo hegemônico global dos Estados Unidos,
com sua dominação militar crescente do planeta como um estado nacional agressivo, a fase presente de
imperialismo é provavelmente a mais letal.
No decurso do andamento histórico do sistema do capital a superestrutura política e legal assumiu um
papel cada vez mais preponderante. A fase presente de imperialismo hegemônico global é a sua mais
extrema manifestação, marcando o fim de um caminho até o momento praticável, mas ao mesmo tempo
absolutamente inviável no longo prazo, diante de uma relação ainda prevalecente de forças na qual alguns
países com populações imensas e poderio militar equivalente, incluindo a China, são marginalizados. Pois
nada poderia ser mais decisivo para sua dominação e todos os aspectos da vida social – das condições
elementares de reprodução material e seu grave impacto sobre a natureza até as formas mais mediadas de
produção intelectual – que a operação de um sistema que ameaça direta e indiretamente a humanidade
com o destino da auto-destruição. Até mesmo um retorno aos violentos confrontos entre estados
anteriormente experimentados é possível em um futuro não muito distante, que poderia certamente
exterminar a vida humana neste planeta, se os antagonismos destrutivos do sistema do capital não forem
resolvidos de um modo historicamente sustentável no tempo que ainda nos resta. Por conseguinte, apenas
uma transformação qualitativa da superestrutura legal e política estabelecida em sua totalidade, junto
com a reestruturação radical de sua base material que deixou de ser viável, pode mostrar uma saída deste
beco escuro. Isto significa uma transformação abrangente que é concebível somente no espírito da
alternativa socialista hegemônica vislumbrada ao modo de controle sociometabólico do capital.
2.
PODEMOS ver o impacto profundo da reciprocidade entre o domínio material e o Estado moderno se
observamos a conexão inerente entre:
(a) as relações de troca universais em curso sob o jugo da produção generalizada de mercadorias do
capital e;
(b) as determinações formais que permitem (pois devem permitir) a equalização sistemicamente
necessária de incomensurabilidades. Pois esta relação, baseada na predominância universal do trabalho
abstrato na ordem sociometabólica dada, deve ser sustentado em todos os níveis de trocas societais,
ofuscando formalmente e obliterando de forma fetichista a incomensurabilidade substantiva por toda
parte.
Naturalmente, isto inclui a maneira pela qual os indivíduos envolvidos na produção e na troca são
administrados na ordem sociorreprodutiva estruturalmente preordenada – e neste sentido como uma
matéria de determinação sistêmica inalterável tanto hierárquica/iníqua como incuravelmente antagônica
sendo em outro sentido, formalmente equitativa do capital.
Como sabemos, a produção e troca generalizada de mercadorias são impensáveis sem a equação universal
do valor que deve ser cumprida constantemente com base nas práticas reprodutivas materiais do capital.
A homogeneização formal redutiva de toda sãs relações substantivas – e desse modo a reconciliação de
formas irracionais posta em relevo por Marx é seminalmente importante a este respeito. É crucial para
entender a interconexão profunda entre os processos reprodutivos materiais e a constituição histórica
específica da superestrutura legal e política cada vez mais poderosa do capital exigida para a sustentação
do sistema como um todo. Pois, visto simplesmente do ângulo das unidades particulares, as relações de
troca cada vez mais complexas dos microcosmos reprodutivos materiais em expansão – emergindo da
centralização e concentração irrefreáveis do capital auto-expansivo – geram demandas constantemente
crescentes por coesão e apoio que elas mesmas, enquanto estruturas produtivas confinadas localmente,
são totalmente incapazes de suprir. E a implicação causal de tal circunstância para o desenvolvimento da
própria estrutura legal e política poderia ser vista, de modo um tanto errôneo, como uma determinação
unidirecional do complexo societal global pela base material.
Contudo, precisamente porque as recém-analisadas demandas crescentes das unidades produtivas
orientadas pela expansão não poderiam ser satisfeitas de forma alguma pelos próprios microcosmos
reprodutivos materiais particulares, as complexas relações de troca historicamente emergentes – com as
quais estamos bem familiarizados – não poderiam ser estabelecidas desde o início sem trazer à cena de
modo pleno a estrutura legal e política do capital como a condição necessária de coesão e
desenvolvimento sistêmicos. Sem o envolvimento de apoio direto ou indireto da dimensão política do
sistema capital até mesmo as necessidades expansionistas mais genuínas teriam de permanecer como
meras exigências abstratas frustradas, ao invés de serem tornadas demandas efetivas. Isto novamente
enfatiza fortemente as determinações recíprocas da dialética histórica na articulação real da base material
reprodutiva do capital enquanto um sistema coerente e sua formação estatal.
Neste sentido, são inseparáveis a universalidade formal/legal do Estado e a mercantilização universal do
capital. A insuperável hierarquia estrutural substantiva da base material do capital encontra seu
equivalente no nível das relações legais e políticas, clamando pela defesa da mais iníqua ordem
estabelecida a qualquer preço. Medidas e racionalizações formais, não importando o quão engenhosas,
não podem obliterar as desigualdades substantivas e antagonismos estruturais.
Na verdade a necessidade de uma racionalização ideológica apologética torna-se ainda mais pronunciada
paralelamente à transição da fase ascendente para a decadente do desenvolvimento do capital. Por
conseguinte, Kant todavia não precisa de cinismo ou hipocrisia quando contrasta a igualdade estritamente
formal da lei plausível sob o domínio do capital com a desigualdade substantiva exigida para administrar
a ordem social antagônica dada. Assim escreve ele sem nenhum disfarce que:
“A igualdade geral dos homens enquanto súditos de um Estado coexiste prontamente com a maior
desigualdade em graus de posses que os homens têm, consistam estas posses de superioridade corpórea
ou espiritual ou ainda de posses materiais. Daí que a igualdade geral dos homens também coexiste com a
grande desigualdade de direitos específicos dos quais pode haver muitos [...] Não obstante, todos os
súditos são iguais entre si perante a lei, a qual, como um pronunciamento da vontade geral, pode ser
apenas uma. Esta lei concerne a forma e não a matéria do objeto sobre o qual posso ter um direito.”[1]
Do mesmo modo, Adam Smith não é menos tentado pela necessidade de esconder que “Enquanto houver
propriedade não pode haver governo, cuja finalidade mesma é assegurar a riqueza e defender os ricos dos
pobres.”[2] No entanto, no momento em que chegamos ao “lutador profissional contratado” do capital,
Hayek, na fase decadente do desenvolvimento do sistema, tudo é virado de cabeça para baixo. As práticas
exploratórias impostas sobre “a maioria do proletariado e a maior parte dos milhões do mundo em
desenvolvimento”[3] – defendidas pelo estado neoliberal com todos os recursos a seu dispor contra as
pessoas que ousassem se opor – são glorificadas enquanto “práticas morais”, e nos é dito
peremptoriamente por Hayek que “Se perguntarmos o que o homem mais deve às práticas morais
daqueles que são chamados capitalistas a resposta é: suas próprias vidas.”[4] A ironia particular a este
respeito é que Hayek diz escrever no espírito de Adam Smith enquanto, na verdade, se opunha
diametralmente a ele. Contradizendo desavergonhadamente o mesmo gigante intelectual Adam Smith, da
fase ascendente do desenvolvimento do sistema do capital, o qual não hesitou em denunciar em seu tempo
o fato deplorável – imposto atualmente não menos que no passado através das pretensas “práticas morais”
dos capitalistas idealizados por Hayek sobre “a maior parte dos milhões do mundo em desenvolvimento”
os quais cobrem o mundo em condições desoladoras de trabalho nas fábricas exploradoras transnacionais
– ao dizer que “as pessoas que vestem o mundo estão em farrapos elas mesmas.”[5]
Adam Smith percebeu muito claramente que o sistema injusto de propriedade de seu tempo somente
poderia ser sustentado numa base duradoura se o governo da ordem estabelecida permanecesse
defendendo a riqueza dos ricos contra os pobres. Dessa maneira – ao ver o mundo com honestidade do
ponto de vista privilegiado do capital – ele notou que a base material do sistema no qual ele acreditava
firmemente e seu Estado político governante, eram inseparáveis um do outro. O que era impossível para
Adam Smith esclarecer do ponto de vista privilegiado do capital era a implicação radical de sua própria
conclusão. Nomeadamente que para subverter a injustiça percebida e denunciada sobre aqueles que
“vestem o mundo estão e em farrapos elas mesmas”, a base material e o Estado político protetor do
sistema, que se erguem juntos, também devem cair juntos.
3.
A preponderância crescente da superestrutura legal e política no decurso da história moderna está bem
distante de ser uma decorrência de contingências corrigíveis. Pelo contrário, é devida ao caráter mais
íntimo e à constituição objetiva do sistema. Pois o Estado Nacional moderno é absolutamente
incontrolável nos próprios termos de referência do capital, como uma questão de determinação estrutural
insuperável. O fracasso completo de todas as tentativas orientadas para uma reforma do estado
socialmente significativa no decorrer do último século e meio fala inconfundivelmente sobre esta questão.
Para piorar ainda mais as coisas, a base material estruturalmente consolidada do sistema do capital é
também incontrolável, assim como em um sentido socialmente significativo irreformável. Mais uma vez,
não como uma questão de contingência histórica corrigível mas como resultado de sua determinação
estrutural fundamental. Na verdade as dimensões reprodutiva material e político-legal do sistema
possuem uma relação das mais paradoxais. Pois elas contribuem poderosamente através de suas trocas
históricas recíprocas para a imensa expansão uma da outra e, desse modo, delas mesmas também, mas
elas são totalmente incapazes de exercer um impacto restritivo significativo uma sobre a outra, menos
ainda sobre si mesmas. A lógica interna deste tipo de desenvolvimento é que, como resultado, estamos
sujeitos às conseqüências definitiva e amplamente destrutivas de uma unidirecionalidade perigosa,
conduzindo ao beco sem saída potencialmente suicida. Assim sendo porque um sistema de cultivo
societal o qual, por sua constituição mais íntima e determinação estrutural, é incapaz de reconhecer e
aceitar qualquer limite ¾ nem mesmo quando fazê-lo seria, como hoje, absolutamente imperativo ¾ não
pode oferecer solução viável alguma para o futuro.
a lógica perversa do sistema do capital é que as dimensões material e político-legal podem
complementar-se uma a outra somente de um modo definitivamente insustentável. pois, embora a
dimensão político-legal possa conter a lógica centrífuga no interesse da expansão sistêmica global, é
absolutamente incapaz de introduzir uma contenção racional em seu próprio modo de operação. isto se dá
porque é incompatível com a racionalidade sistemática global exigida para um controle significativo.
Esta é a razão fundamental pela qual a articulação final da lógica inerente ao Estado nacional capitalista
assumiu a forma da rivalidade imperialista que persiste até hoje, apesar das negações verbais, não menos
que outrora. Hegel, um século antes do desenvolver das guerras globais, não tinha ilusões a respeito da
questão da controlabilidade. Ele afirmou com espantosa fraqueza que “O Estado nacional é mente em sua
racionalidade substantiva e efetividade imediata e é, portanto, o poder absoluto sobre a terra.”[6] Idéias
contrárias, como a projeção kantiana da “paz perpétua” e sua proposta instrumentalidade de uma Liga de
Nações, provou não ser mais que um nobre pensamento otimista sobre a base material do capital.
A lógica indefensável dos microcosmos reprodutivos materiais do capital é: “crescer eternamente ou
implodir!” A persistente projeção desejosa hoje em dia da amplamente benéfica “globalização” é a
racionalização ideológica daquela lógica. Ao mesmo tempo, a imposição opressiva do imperialismo
hegemônico global em nosso tempo – com seu envolvimento sem hesitação em guerras maciçamente
destrutivas, incluindo as guerras perseguidas há não muito no Vietnã e agora no Oriente Médio, e de fato
não diminuindo sequer com a ameaça do uso de armas nucleares contra estados desprovidos de tais
armamentos – está longe da “efetividade racional” correspondente à lógica indisfarçada do capital.
A grave contradição na raiz de tais decorrências é que, em nosso período histórico de desenvolvimentos
globais material e produtivamente cada vez mais entrelaçados, nos são oferecidas racionalizações
globalizantes dentro do horizonte do estado nacional agressivo dominante, os Estados Unidos da América
e seu complexo militar-industrial, mas não soluções viáveis aos antagonismos do capital seja em termos
da base materiais do sistema do capital, seja no nível de suas formações estatais rivais. A dolorosa
verdade da questão é que – em vista do fracasso histórico necessário do capital em constituir o estado do
capital enquanto tal, nenhuma solução sustentável é concebível dentro da estrutura da ordem social do
capital de forma alguma controlável.
Além disso, o fracasso histórico em criar o Estado do sistema do capital enquanto tal é ele mesmo
qualquer coisa menos uma contingência corrigível. Pois a estrutura legal e política exigida globalmente de
interação regulatória, mesmo se vislumbrada como confinada a um período de transição relativamente
pequeno na rota para uma normatividade positivamente funcional, necessitaria de uma racionalidade
abrangente desde o momento de sua criação para tornar-se historicamente sustentável. O sistema do
capital, no entanto, é incompatível com tudo que não seja a mais parcial e restrita racionalidade. Essa é a
razão para a incapacidade lógica do Estado nacional capitalista em nosso tempo, afirmando-se como antes
na forma da rivalidade imperialista independente do quanto seus “atores” principais possam mudar de
tempos em tempos, permanece conosco mesmo sob as condições atuias de colisões potencialmente
catastróficas.
10.
ASSIM, a transformação radical exigida da superestrutura legal e política é inseparável da reconstituição
da dialética histórica que vem sendo perigosamente distorcida e definitivamente subvertida no decorrer da
fase decadente do desenvolvimento do capital, degradando desse modo o impulso auto-expansivo outrora
positivo do sistema à condição de incontrolabilidade cega.
A diferença principal em relação a este problema é que o sistema do capital fora estabelecido
primordialmente com base na desigualdade substantiva estruturalmente resguardada, graças também à
violência em grande escala da “acumulação primitiva” que fora enormemente facilitada em sua forma
clássica na Inglaterra pelo estado absolutista de Henrique VIII. Em completo contraste com a
desigualdade substantiva do capital profundamente consolidada em todos os domínios, das relações
materiais diretas às mais mediadas relações culturais, o necessário modo alternativo – socialista – de
reprodução sociometabólica não pode ser considerado historicamente viável a não ser que seja
qualitativamente reconstituído e firmemente mantido em sua nova conjuntura com base na igualdade
substantiva.
Enfatizar este contraste vital entre as características definidoras substantivas dos modos históricos
alternativos de reprodução sociometabólica de nosso tempo é ainda mais importante para nós pois em
suas auto-imagens ideologicamente bem difundidas o capital sempre proclamou sua adesão programática,
no que se refere a seus termos legislativos, à igualdade contratual, assim como em termos práticos
materiais reprodutivos afirmou regular a ordem sócio-econômica com base na equação universal do valor.
Contudo, todas estas práticas têm sido buscadas na realidade com base somente na transformação redutiva
de incomensurabilidades substantivas em relações formalmente equalizáveis, sob a dominação ubíqua da
produção generalizada de mercadorias e de seu trabalho abstrato equalizável de forma fetichista.
As relações substantivas de dominação e subordinação exploratórias profundamente iníquas e
estruturalmente salvaguardadas poderiam ser, portanto, continuadas nas práticas sociorreprodutivas do
capital por um longo tempo imperturbadas, até o início de algumas grandes crises tão tardias quanto as da
fase imperialista monopolista do desenvolvimento do sistema.
Entrementes, a normalidade longamente persistente da equação universal do valor, sob a dominância da
produção de mercadorias generalizada de modo fetichista, teve êxito em conferir até mesmo uma auréola
de “liberdade-fraternidade-igualdade” às conceptualizações ideológicas do sistema do capital. A
superestrutura legal e política crescentemente mais preponderante do capital, em andamento no curso da
história com sua selva legal em inexorável expansão, que alcançou seu clímax em nosso tempo, fez um
contribuição vital ao sucesso contínuo deste modo de sociorreprodução. Ela cumpriu seu problemático
papel estabilizador do modo mais autoritário na fase decadente do desenvolvimento sistêmico do capital.
De modo conforme, ela contribuiu com todos os meios possíveis a seu dispor para a cada vez mais
perigosa subversão da dialética histórica.
Previamente à articulação do sistema do capital moderno e sua formação estatal a questão da igualdade
não emergiu de modo algum com relação à dimensão sócio-econômica e política da sociorreprodução.
Como sabemos, a “democracia grega” pôde sustentar suas práticas de tomada de decisão política
impressionantemente avançadas baseando-se na escravidão como sua duradoura base reprodutiva
material. Uma forma de escravidão regulada enquanto um modo de reprodução sociometabólica no qual
seres humanos poderiam ser caracterizados por um pensador tão grande como o próprio Aristóteles como
nada mais que “ferramentas falantes”. Ademais, mesmo em um estágio muito mais tardio de
desenvolvimento histórico o estado feudal, em seus bem conhecidos esforços legitimatórios, não hesitava
em reivindicar a linhagem divina em favor de seu quadros dominantes privilegiados. Este modo de
conceptualização da ordem do mundo não representou problema algum fosse para o sistema escravista
antigo como para o feudal do medievo. Pois em ambos os casos qualquer preocupação com igualdade,
não apenas a igualdade substantiva mas mesmo a formal, era totalmente irrelevante para a forma pela qual
as condições de existência dos membros da sociedade eram efetivamente produzidas e reproduzidas em
seu curso constante.
Em completo contraste, a preocupação do Estado capitalista com a igualdade desde o início de seu
desenvolvimento histórico estava enraizado nas equalizações formais de sua base material e, enquanto tal,
aquele tipo de preocupação com a igualdade era tanto necessário quanto genuíno em seus próprios termos
de referência. O fator de complicação era que a própria relação do capital – baseada na alienação do
trabalho e sua corporificação no capital – pôde ser pressuposta circularmente nas conceptualizações autoservientes
do capital como o único modo viável da ordem reprodutiva “natural”, ao nível dos princípios
operativos cotidianos do sistema. Em concordância com isso, a igualdade contratual e a equação universal
do valor puderam ser proclamadas de forma coerente como constituindo o modus operandi eficiente do
sistema do capital por seus maiores representantes intelectuais, incluindo Adam Smith e Hegel. Esta
abordagem tornou-se indefensável apenas quando a questão da gênese histórica do sistema teve de ser
levantada, precisamente com vistas a reavaliar sua viabilidade com relação ao futuro, sob a luz de sua
desigualdade substantiva consolidada estruturalmente que se tornou contestada por um crescente
movimento social baseado em classe no fulcro da Revolução Francesa e das guerras napoleônicas.
A esta altura, quando a questão do tempo surgiu no horizonte com relação tanto ao passado quanto ao
futuro, a antiga pressuposição circular dos próprios princípios operativos teve de falhar em cumprir sua
função costumeira. Pois, em franco contraste com a igualdade formalmente estipulada, a qual pode ser
racionalizada ideologicamente sob todos os tipos de postulados totalmente implausíveis, como vimos ser
feito por um grande filósofo como Kant, a igualdade substantiva, com suas determinações qualitativas,
não pode ser tratada circularmente, de maneira a vindicar sua exclusão apriorística da louvável
normatividade social ao arbitrariamente proclamar auto-referencialidade, oferecida como um julgamento
“conclusivo” por definição.
11.
INEVITAVELMENTE, portanto, uma vez que a questão da igualdade substantiva enquanto tal é
levantada com relação ao estado moderno, traz consigo o desafio de confrontar o difícil problema da
necessária decadência do estado em sua efetividade historicamente constituída. Pois no interior dos
confins historicamente determinados do estado moderno – os quais devem ser hierarquicamente
ordenados tanto internamente como em suas relações interestatais, corporificando desse modo a alienação
radical do poder de tomada de decisão abrangente dos indivíduos sociais – a idéia mesma de igualdade
substantiva é estruturalmente negada por necessidade.
Contudo, a instituição de uma ordem reprodutiva substantivamente equitativa representa um desafio
fundamental para nosso futuro, pede pela transformação radical da própria superestrutura legal e política
hierarquicamente estruturada, junto a suas premissas práticas e pressuposições radicais. A grande
expansão do sistema do capital foi tornada possível em primeiro lugar pelo avanço progressivo de um
sistema de dominação indisputável do valor-de-uso pelo valor-de-troca através do qual a equação
universal do valor tornou-se a dinâmica operativa que assegurou a expansão sob o jugo da produção
generalizada de mercadorias. Enquanto um membro de importância vital do sistema dicotômico, a troca
pôde exercer um papel dominante no processo de reprodução material, muito independentemente das
conseqüências que surgiriam no longo prazo de sua supremacia sobre a produção e sobre as demandas
que pôde impor – “pelas costas do indivíduos produtores” – até mesmo sobre os recursos naturais
disponíveis e necessariamente finitos. Em última análise, portanto, um sistema desse tipo tinha de se
descontrolar uma vez que os limites sistêmicos objetivos do modo de reprodução sociometabólica do
capital fossem ativados.
Além disso, o que tornou as coisas piores foi o fato de que a dominação alienante do uso humano pelas
exigências fetichistas da troca de mercadorias não fora sustentada simplesmente pela relação de troca
dada em e por si mesma. A dominância da troca sobre o uso teve seus corolários igualmente
problemáticos que em conjunção constituíram um sistema ao fim impossível de ser administrado. Um
sistema de dicotomias não-dialéticas as quais se afirmaram com peremptoriedade categórica tanto
materialmente quanto no âmbito político. De fato, o mesmo tipo de dicotomias não-dialéticas,
características do sistema do capital como um todo, tiveram de prevalecer através da dominação da
quantidade sobre a qualidade, do abstrato sobre o concreto e do formal sobre o substantivo, como aquilo
que vimos na dominância necessariamente reificante do valor-de-troca sobre o valor-de-uso sob a
equação universal do valor da ordem reprodutiva estabelecida.
Sem dúvida, na raiz de todas estas relações inevitavelmente distorcedoras de dominação e subordinação
unilateral encontramos a subordinação estrutural do trabalho ao capital politicamente assegurada e
resguardada, racionalizada através da mais absurda, ainda que tenha funcionado bem por um longo
período histórico, prática reprodutiva de homogeneização formal/redutiva que transforma em mercadorias
e equaciona de modo redutivo seres humanos viventes com o trabalho abstrato. Não é de forma alguma
surpreendente, portanto, que a cada vez mais preponderante superestrutura legal e política do sistema
tenha desempenhado, e continue a fazê-lo, um papel de apoio crescentemente irracionalista ao postergar o
“momento da verdade”. Este momento, não obstante, chega quando se torna inevitável pagar pelas
conseqüências destrutivas dos perigosos desenvolvimentos em curso em uma escala global no domínio
reprodutivo material e no plano político/militar. Da forma como as coisas se encontram hoje, dado seu
poder preponderante, o “estado democrático” pode preencher seu papel coadjuvante irracional ao varrer
para o lado com autoritarismo cinicamente encenado – seja “neoliberal” ou “neoconservador” – qualquer
preocupação até mesmo sobre as maiores colisões militares regularmente em erupção.
Neste sentido, a transformação radical da superestrutura legal e política, como uma exigência literalmente
vital de nosso tempo, requer uma mudança fundamental na base material sustentável no longo prazo. Isto
significa superar a dominação dicotômica não-dialética de um lado das relações mencionadas há pouco
sobre o outro, da dominação da troca sobre o uso, assim como do abstrato sobre o concreto, chegando à
obliteração historicamente não mais defensável das determinações qualitativamente vitais de qualquer
modo de sociorreprodução viável no longo prazo pelo fetichismo da quantificação universal e a
conseqüente equalização das incomensurabilidades.
A reconstituição da dialética histórica sobre uma base substantiva equitativa estruturalmente assegurada
não é, portanto, um postulado filosófico especulativo, mas uma exigência objetiva central de nossas
condições de existência nos dias presentes. Pois a perigosa subversão da dialética histórica coincidiu com
a cada vez mais antagônica fase decadente do desenvolvimento do sistema do capital e a ativação de sua
crise estrutural, trazendo consigo a ameaça, assim como a desconsideração prática irracionalista, até
mesmo às mais elementares condições de vida humana sustentável neste planeta. Naturalmente, a
superestrutura legal e política até do mais autoritário estado, não importando o quão alardeado e protegido
ele possa ser não somente por seu desperdiçador arsenal militar mas também por sua cada vez mais densa
selva legal, não pode de modo algum contrapor-se permanentemente ao caráter urgente de tais
determinações e exigências objetivas.
O modo de controle sociometabólico do capital pôde prevalecer por um longo período histórico porque
constituiu um sistema orgânico no qual a base material de sociorreprodução e sua dimensão regulatória
político-legal abrangente estavam entrelaçadas inextricavelmente em um modo expansivamente
dinâmico, tendendo em direção a uma integração global totalmente ampla. De fato, por quase três séculos
o impulso expansionista do sistema do capital pôde prosseguir de maneira bastante desimpedida.
Entretanto, um primeiro limite estruturai insuperável deste sistema, sobrecarregado com lógica
definitivamente auto-destrutiva de sua formação de estados nacionais incontrolável, no caso , a
necessidade de desenvolvimentos monopolistas e a associada rivalidade imperialista entre os estados
dominantes, tinha de tornar o sistema historicamente inviável em uma era na qual a busca pela guerra
global pode somente resultar na auto-destruição da humanidade. E um segundo limite estrutural
insuperável do sistema do capital não é menos grave. Pois no plano da reprodução material seu impulso
auto-expansivo racionalmente irrefreável, intensamente promovido pela formação estatal do capital,
alcançou inevitavelmente o ponto de colisão com os limites objetivos dos recursos de nosso planeta,
clamando pela adoção das práticas sociorreprodutivas qualitativamente diversas da única economia viável
– em uma forma econômica humanamente significativa – em nosso lar planetário. Naturalmente, encarar
os desafios que emergem destas limitações estruturais fundamentais do sistema do capital, com a
transformação radical de sua superestrutura legal e política em conjunção com sua base material, no
espírito indicado nesta palestra, é uma exigência absolutamente vital.
[1] Immanuel Kant, “Theory and Practice: Concerning the Common Saying: This May Be True in Theory
But Does Not Apply to Practice”, in Carl J. Friedrich (ed.). Immanuel Kant’s Moral and Polítical
Writings. New York: Random House, 1949.
[2] Adam Smith, “Lectures on Justice, Police, Revenue, and Arms”, in Herbert W. Schneider (ed.), Adam
Smith’s Moral and Polítical Philosophy. New York: Hafner Publishing Company, 1948.
[3] Friedrich Von Hayek, The Fatal Conceit. Chicago: University of Chicago Press, 1989.
[4] Ibid.
[5] Adam Smith, Op. Cit.
[6] G. W. F. Hegel. Princípios da filosofia do direito. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
Pré-sal: Modelos errados


"Não faz sentido criar uma nova estatal para gerir o pré-sal.
Muito menos manter o regime de concessão onde não mais
existe o risco de exploração"
CARTA CAPITAL
28/08/2009

Por Ildo Sauer


Dois assuntos têm sido objeto de atenção da opinião pública: a CPI da Petrobras/ANP e a
reformulação da política energética nacional em decorrência dos recursos do pré-sal. Uma
retrospectiva histórica permite elucidar pontos essenciais que vinculam estas questões com um
novo projeto nacional.
A apropriação social da energia esteve no centro das duas grandes revoluções sociais pelas
quais a humanidade passou. A revolução agrícola, ocorrida há cerca de dez milênios, guarda
forte vínculo com a apropriação da fotossíntese e do ciclo hidrológico, movidos pelo Sol, para a
seleção e cultivo das plantas e domesticação de animais, em torno dos quais se deu a ruptura
na forma de suprir as necessidades da existência humana pela agricultura em vez da caça e da
coleta.
Uma nova ruptura, vinculada à Revolução Industrial, em sua primeira fase, no século XVIII,
esteve associada à apropriação da energia do carvão. Na segunda fase, no século XIX, com
aprofundamento deste processo, mediante a apropriação adicional dos recursos do petróleo,
dos potenciais hidráulicos, no âmbito dos nascentes complexos industriais da eletricidade, das
telecomunicações, da indústria automotiva e petrolífera, todos associados ao sistema
financeiro.
A percepção do papel da apropriação social da energia, especialmente do petróleo e da
indústria elétrica, nos processos de transformação social, induzidos pela industrialização e
urbanização, esteve no cerne da luta dos brasileiros, nas décadas de 1940 e 1950, que
conduziram ao monopólio estatal do petróleo e à criação da Petrobras, da Eletrobrás, da
Telebrás, do BNDE e da CSN como instrumentos indispensáveis para a possibilidade material
de transformação da sociedade agrário-mercantil em outra. Nos anos 40/50, percebendo a
importância que passaria a ter o domínio da energia para o processo de modernização
produtiva, nasceu a campanha “O petróleo é nosso”. Na esteira desse movimento criou-se a
Petrobras.
A missão da Petrobras em sua primeira fase, nos anos 50-70, foi garantir que todas as regiões
do País tivessem acesso aos derivados do petróleo, um fator essencial à modernização das
condições de vida. Foi criada com o desafio de encontrar petróleo e abastecer o mercado
interno. A produção nacional não atingia 1,6% do nosso consumo. A companhia intensificou a
exploração e trabalhou na formação e especialização de seu corpo técnico. Tomou-se a
decisão de ampliar o setor de refino existente com o objetivo de reduzir os custos de
importação dos derivados de petróleo. A Petrobras cumpriu essa tarefa. E esse petróleo veio
do exterior. No esforço de garantir o suprimento, a empresa passou a desenvolver atividades
fora do Brasil e descobriu, no período, o maior campo petrolífero do Iraque, chamado de
Majnoon (o Maluco) dada a sua enormidade (que foi, todavia, nacionalizado).
Com o primeiro choque do petróleo em 1973 e o segundo, em 1979, criou-se uma nova
situação, na qual a economia mundial entrou em crise. O paradigma keynesiano de intervenção
estatal definida, forte, entrou em crise também, pois as taxas de acumulação do capital se
reduziram drasticamente. Países como o Brasil, que tinham embarcado em um projeto de
desenvolvimento acelerado, aprovisionado com financiamento externo, viram-se duplamente
ameaçados: pela conta petróleo, extremamente alta, e pela inflação internacional combinada
com as altas taxas de juro decorrentes da crise americana dos anos 1980. Essas condições
levaram o Brasil a um novo limiar e a Petrobras é solicitada a uma nova missão. Diante da
crise, no Brasil a estratégia teve de mudar: a meta passou a ser atingir a autossuficiência.
Não encontrando petróleo em terra, a Petrobras, para assegurar sua missão de redução da
dependência energética, migra para o mar. Em 1968 haviam sido iniciadas as atividades de
prospecção offshore, no recém-descoberto campo de Guaricema, Sergipe. Em 1974
encontrou-se a bacia que é, até o momento, a maior produtora do Brasil, Campos. A área
inicial foi Garoupa, seguida pelos campos gigantes de Marlim, Albacora, Barra--cu-da- e
Roncador. É nesta fase que se desenvolve a tecnologia de exploração em águas profundas e
ultraprofundas.
Progressivamente, da exploração em lâminas de água de poucas dezenas de metros, passa-se
para centenas e, mais adiante, para mil, 2 mil e hoje, profundidades próximas a 3 mil metros. E
assim o Brasil alcança a autossuficiência em 2006.
A autossuficiência permitiu a estabilidade macroeconômica do País, mesmo recentemente,
quando o preço de petróleo superou os 100 dólares. A capacitação na área de exploração,
desenvolvimento, produção, gestão, associada à interação com grandes organizações
mundiais de ponta, permitiram à Petrobras testar um modelo geológico, desenvolvido ao longo
de décadas, que previa a possibilidade da existência de um segundo andar de petróleo, abaixo
do primeiro, que permitiria essa autossuficiência.
Era possível que as anomalias que ficaram registradas nas investigações geo-físicas
representassem mais petróleo. A oportunidade apresentou-se quando a perfuração no poço 1-
RJS-628A (Tupi), do bloco BM-S-11, adquirido no BID 2: em 14 de setembro de 2000, cuja
perfuração iniciada em 30 de setembro de 2005 foi concluída em 13 de agosto daquele ano
sem sucesso no pós-sal. Foi tomada a decisão de promover uma reentrada, em 2 de maio de
2006, com o objetivo no pré-sal, levando à notificação da descoberta de óleo, em 10 de julho,
com a conclusão da reentrada em 12 de outubro. Em 7 de maio de 2007 foi iniciada a
perfuração do poço 3-RJS-646 (Extensão de Tupi) - Área do PA do 1-RJS-628A, levando à
descoberta de óleo em 8 de agosto, com a conclusão da perfuração em 28 de setembro,
validando o modelo do pré-sal.
O presidente da República foi informado pela Petrobras do andamento das atividades desde a
primeira confirmação da existência de óleo no pré-sal, bem como do imenso impacto potencial
da descoberta. O governo foi alertado para a necessidade da mudança do modelo vigente.
Mesmo assim, o regime de concessões foi mantido e rodadas de licitação realizadas em 2006.
Só no fim de 2007, após uma longa luta, tendo de um lado setores da Petrobras, e de outro a
Casa Civil e a ANP, foram retirados dos leilões 41 blocos no entorno de Tupi. Foram mantidos,
porém, os do arco do Cabo Frio, na franja do pré-sal, arrematados por empresa nacional que,
meses antes, havia recrutado quadros da Petrobras que gerenciavam as informações
confidenciais do pré-sal. As consequências econômicas, estratégicas e políticas das
concessões sobre o pré-sal, em quatro rodadas do governo FHC e especialmente em cinco do
governo Lula ainda serão objeto de análises históricas, sob a perspectiva do interesse
nacional.
Há uma determinação fundamental que permitiu se chegar a esse expressivo potencial.
Embora não esteja totalmente quantificado, é estimado entre 30 bilhões e 130 bilhões (e até
mesmo 250 bilhões para os otimistas) de barris equivalentes de petróleo. Para ilustrar esta
grandeza, 130 bilhões de barris equivaleriam a dez vezes o que a Petrobras definiu, em termos
de petróleo extraível por meios convencionais, como reservas provadas, até este ano. A
posição do Brasil seria elevada a um patamar próximo das grandes reservas internacionais:
Iraque, Venezuela, Irã, Kuwait. Até mesmo da maior, a Arábia Saudita.
Diante do cenário atual, a estratégia adotada nos últimos anos pela Petrobras, de acelerar os
investimentos tendo em vista a perspectiva de exaustão definitiva dos recursos de petróleo
convencional no mundo, mostra-se acertada. Conhecimentos teóricos disponíveis permitem
estimar que ainda haja cerca de 2 trilhões de barris de petróleo convencional remanescentes. A
uma taxa de retirada de 85 milhões de barris por dia, ainda em crescimento, vão se exaurir nos
próximos 40 anos. Há ainda cerca de 5 ou 6 bilhões de barris adicionais de petróleos não
convencionais, de extração mais difícil e dispendiosa. Além disso, existem aproximadamente
no mundo 2 trilhões de barris equivalentes de petróleo sob a forma de gás natural.
O acerto da estratégia tem consistido em investir fortemente em produção e exploração no
Brasil e no exterior por haver uma tendência de valorização definitiva do petróleo nesse cenário
de pré-exaustão, apesar das restrições colocadas pela mudança climática. O gás natural já é
uma possibilidade adicional de gerar valor, pois cada 150 metros cúbicos de gás permitem a
substituição de 1 barril de petróleo. E há ainda o esforço no segmento dos biocombustíveis
para criar, desde já, uma alternativa à exaustão final do petróleo.
A estratégia é fruto de um trabalho histórico, de uma companhia cuja corporação possui, hoje,
75 mil pessoas. Seu grande patrimônio não é o petróleo encontrado, mas a capacidade de
encontrar petróleo, desenvolver petróleo, desenvolver gás natural, desenvolver soluções para a
inevitável nova transição energética, da era pós-petróleo, incluindo os biocombustíveis e outras
fontes renováveis. Este é o valor da Petrobras, fruto do esforço histórico do povo brasileiro que
acreditou nela, que lhe deu apoio quando foi ameaçada de privatização, quando a chamaram
de Petrobrax, em pleno auge do neoliberalismo dos anos 90.
E daqui para frente? Primeiro, é preciso separar a necessária capacitação de operação em
toda a cadeia das atividades petrolíferas, com as especificidades inerentes ao pré-sal. O centro
de excelência mundial para isso é a Petrobras.
Com essa retrospectiva e com o atual quadro mundial um conjunto de perguntas que precisam
ser respondidas e algumas decisões urgentes a serem tomadas: o petróleo do pré-sal é uma
jazida gigante única ou um arquipélago de grandes poços? Sem esse conhecimento, o risco de
conflito aumenta. Um concessionário pode sugar o petróleo de outro e mesmo degradar a
operação otimizada dos reservatórios.
A primeira decisão sobre os campos gigantes de petróleo do pré-sal deve ser a contratação da
Petrobras, que os descobriu, para avaliar toda a sua extensão, mediante um contrato com o
governo pelo custo do serviço. Petróleo é, cada vez mais, um recurso geopolítico. As grandes
reservas mundiais estão sob o controle dos Estados nacionais e de suas empresas estatais.
O açodamento na definição dos modelos de partilha pode estar mais ligado ao calendário
eleitoral do que ao aproveitamento dos recursos no interesse do povo brasileiro. Há um grave
precedente. A proposta de modelo do setor energético elaborado a partir das discussões do
Instituto Cidadania, em 2002, previa a apropriação social do excedente econômico,
principalmente por meio de usinas hidráulicas, muitas delas substancialmente amortizadas,
bem como a alteração do modelo para o petróleo, com a adoção do regime de contratos de
partilha, capaz de gerar mais excedentes sociais. Em 2005, o sistema de geração elétrica,
ainda estatal, vinha perdendo, por truques regulatórios, em benefício dos especuladores e
grandes consumidores do mercado livre, cerca de 5 bilhões de reais por ano. No petróleo,
poderá estar em jogo 1 bilhão por dia.
A outra questão, mais importante, é que o mecanismo de gestão estratégica definirá como
serão apropriados os -recursos decorrentes do excedente econômico. O modelo criado em
1997, e ainda vigente, previa um prêmio para quem corresse o risco exploratório. No pré-sal
não existe mais risco exploratório. O modelo atual não tem mais sentido. Se o petróleo é
nosso, ele deve ter a finalidade de permitir que sua riqueza resgate dívidas históricas e
possibilite a construção de um futuro para o País, baseado na modernização tecnológica e da
infraestrutura, na melhora da base educacional e científica, na proteção ambiental e em todo
um conjunto de ações estratégicas que venham a converter o Brasil num país diferente do que
ele é hoje.
O modelo sob o qual vai se dar a exploração desse petróleo tem de levar em conta essa
realidade. Se a organização que construiu essa riqueza, essa possibilidade, deve permanecer
no centro desse processo, isso pouco tem a ver com a operação industrial do setor de petróleo.
Há várias fórmulas possíveis que permitem atingir esses objetivos. Se a Petrobras e seu
sucesso são fruto de uma política de Estado, já há quase seis décadas, certamente os
recursos do pré-sal também devem ter sua destinação debatida em profundidade no
Congresso Nacional e na sociedade brasileira.
Hoje em dia, com a produção próxima a 2 milhões diários de barris, grande parte do excedente
econômico está sendo destinada a finalidades que não cumprem o objetivo de apoiar a
transformação nacional. Este quadro se tornará mais dramático quando a produção duplicar ou
triplicar em razão do pré-sal.
Em 2008 e 2007, respectivamente, as receitas da Petrobras, foram de 315 bilhões e 246
bilhões de reais. Abatidos os insumos adquiridos de terceiros, e as depreciações e
amortizações, o valor adicionado líquido gerado pelas operações foi de 141 bilhões e 127
bilhões de reais, respectivamente, assim distribuídos entre os stakeholders da Petrobras,
respectivamente: Pessoal, 14,5 bilhões e 14,2 bilhões; 2) Bancos (Juros e Aluguéis), 11 bilhões
e 16 bilhões; 3) Acionistas (lucros e dividendos) 30,1 bilhões e 23,3 bilhões. Mais de 60% do
valor adicionado das operações foi destinado à União, estados e municípios, sob a forma de
impostos, taxas, contribuições, royalties, participações especiais e outras: 85 bilhões em 2008
e 74 bilhões em 2007.
Portanto, mesmo no superado modelo atual, a maior parte do excedente econômico já vai para
os governos. Mas sem foco estrutural e estratégico quanto à destinação final. Não vai para os
acionistas, e, embora esta questão deva ser revista, mediante o aumento da participação do
governo na Petrobras, ela não é central. Mudando o regime de concessão para o de partilha da
produção e prestação de serviços, a repartição do excedente econômico poderá ser ajustada
de forma a manter a atualidade tecnológica e empresarial da Petrobras e acumular excedentes
requeridos para financiar o plano estratégico de desenvolvimento econômico e social do País,
a ser formulado.
Não faz sentido cogitar da criação de uma nova empresa para ter atuação industrial. A
capacitação não vem das intenções, mas da história e da cultura da empresa. Se a tal empresa
visa ter atuação meramente administrativa, de controle e contabilidade, será uma substituta
parcial da ANP, cujo papel de qualquer forma está também superado e precisa ser revisto. A
função de ditar o ritmo de exploração, conjugado com os planos de desenvolvimento, não pode
ficar a cargo de empresa ou departamento: é função estratégica de Estado. Uma nova
empresa para gerir o pré-sal corre o risco de se transformar em cavalariça de partilha. Em
todos os governos a Petrobras tem sofrido pressões. A força de resistência vem de sua cultura
e da sua história. Seus defeitos, quase todos estão vinculados aos processos de partilha de
cargos, que às vezes procuram transformar dirigentes em despachantes. Numa nova empresa
este risco político será muito maior.
O governo precisa recuperar o caráter do planejamento nacional em infraestrutura, educação,
saúde, proteção ambiental, ciência e tecnologia, para definir os volumes de investimentos
requeridos. O pré-sal poderá permitir a produção, adicional aos atuais 2 milhões diários do póssal,
de até 10 milhões diários, se as reservas forem superiores a 100 bilhões de barris,
conforme estimativas divulgadas. Nestas condições o excedente econômico anual poderá
superar os 250 bilhões de dólares, liquidamente disponível para financiar a construção
nacional.
Ildo Sauer é Ph.D. em Engenharia Nuclear e professor do Instituto de Eletrotécnica e Energia
da USP. Foi diretor de Gás e Energia da Petrobras (2003-2007)
Pré-sal: Modelos errados
"Não faz sentido criar uma nova estatal para gerir o pré-sal.
Muito menos manter o regime de concessão onde não mais
existe o risco de exploração"
CARTA CAPITAL
28/08/2009
Por Ildo Sauer
Dois assuntos têm sido objeto de atenção da opinião pública: a CPI da Petrobras/ANP e a
reformulação da política energética nacional em decorrência dos recursos do pré-sal. Uma
retrospectiva histórica permite elucidar pontos essenciais que vinculam estas questões com um
novo projeto nacional.
A apropriação social da energia esteve no centro das duas grandes revoluções sociais pelas
quais a humanidade passou. A revolução agrícola, ocorrida há cerca de dez milênios, guarda
forte vínculo com a apropriação da fotossíntese e do ciclo hidrológico, movidos pelo Sol, para a
seleção e cultivo das plantas e domesticação de animais, em torno dos quais se deu a ruptura
na forma de suprir as necessidades da existência humana pela agricultura em vez da caça e da
coleta.
Uma nova ruptura, vinculada à Revolução Industrial, em sua primeira fase, no século XVIII,
esteve associada à apropriação da energia do carvão. Na segunda fase, no século XIX, com
aprofundamento deste processo, mediante a apropriação adicional dos recursos do petróleo,
dos potenciais hidráulicos, no âmbito dos nascentes complexos industriais da eletricidade, das
telecomunicações, da indústria automotiva e petrolífera, todos associados ao sistema
financeiro.
A percepção do papel da apropriação social da energia, especialmente do petróleo e da
indústria elétrica, nos processos de transformação social, induzidos pela industrialização e
urbanização, esteve no cerne da luta dos brasileiros, nas décadas de 1940 e 1950, que
conduziram ao monopólio estatal do petróleo e à criação da Petrobras, da Eletrobrás, da
Telebrás, do BNDE e da CSN como instrumentos indispensáveis para a possibilidade material
de transformação da sociedade agrário-mercantil em outra. Nos anos 40/50, percebendo a
importância que passaria a ter o domínio da energia para o processo de modernização
produtiva, nasceu a campanha “O petróleo é nosso”. Na esteira desse movimento criou-se a
Petrobras.
A missão da Petrobras em sua primeira fase, nos anos 50-70, foi garantir que todas as regiões
do País tivessem acesso aos derivados do petróleo, um fator essencial à modernização das
condições de vida. Foi criada com o desafio de encontrar petróleo e abastecer o mercado
interno. A produção nacional não atingia 1,6% do nosso consumo. A companhia intensificou a
exploração e trabalhou na formação e especialização de seu corpo técnico. Tomou-se a
decisão de ampliar o setor de refino existente com o objetivo de reduzir os custos de
importação dos derivados de petróleo. A Petrobras cumpriu essa tarefa. E esse petróleo veio
do exterior. No esforço de garantir o suprimento, a empresa passou a desenvolver atividades
fora do Brasil e descobriu, no período, o maior campo petrolífero do Iraque, chamado de
Majnoon (o Maluco) dada a sua enormidade (que foi, todavia, nacionalizado).
Com o primeiro choque do petróleo em 1973 e o segundo, em 1979, criou-se uma nova
situação, na qual a economia mundial entrou em crise. O paradigma keynesiano de intervenção
estatal definida, forte, entrou em crise também, pois as taxas de acumulação do capital se
reduziram drasticamente. Países como o Brasil, que tinham embarcado em um projeto de
desenvolvimento acelerado, aprovisionado com financiamento externo, viram-se duplamente
ameaçados: pela conta petróleo, extremamente alta, e pela inflação internacional combinada
com as altas taxas de juro decorrentes da crise americana dos anos 1980. Essas condições
levaram o Brasil a um novo limiar e a Petrobras é solicitada a uma nova missão. Diante da
crise, no Brasil a estratégia teve de mudar: a meta passou a ser atingir a autossuficiência.
Não encontrando petróleo em terra, a Petrobras, para assegurar sua missão de redução da
dependência energética, migra para o mar. Em 1968 haviam sido iniciadas as atividades de
prospecção offshore, no recém-descoberto campo de Guaricema, Sergipe. Em 1974
encontrou-se a bacia que é, até o momento, a maior produtora do Brasil, Campos. A área
inicial foi Garoupa, seguida pelos campos gigantes de Marlim, Albacora, Barra--cu-da- e
Roncador. É nesta fase que se desenvolve a tecnologia de exploração em águas profundas e
ultraprofundas.
Progressivamente, da exploração em lâminas de água de poucas dezenas de metros, passa-se
para centenas e, mais adiante, para mil, 2 mil e hoje, profundidades próximas a 3 mil metros. E
assim o Brasil alcança a autossuficiência em 2006.
A autossuficiência permitiu a estabilidade macroeconômica do País, mesmo recentemente,
quando o preço de petróleo superou os 100 dólares. A capacitação na área de exploração,
desenvolvimento, produção, gestão, associada à interação com grandes organizações
mundiais de ponta, permitiram à Petrobras testar um modelo geológico, desenvolvido ao longo
de décadas, que previa a possibilidade da existência de um segundo andar de petróleo, abaixo
do primeiro, que permitiria essa autossuficiência.
Era possível que as anomalias que ficaram registradas nas investigações geo-físicas
representassem mais petróleo. A oportunidade apresentou-se quando a perfuração no poço 1-
RJS-628A (Tupi), do bloco BM-S-11, adquirido no BID 2: em 14 de setembro de 2000, cuja
perfuração iniciada em 30 de setembro de 2005 foi concluída em 13 de agosto daquele ano
sem sucesso no pós-sal. Foi tomada a decisão de promover uma reentrada, em 2 de maio de
2006, com o objetivo no pré-sal, levando à notificação da descoberta de óleo, em 10 de julho,
com a conclusão da reentrada em 12 de outubro. Em 7 de maio de 2007 foi iniciada a
perfuração do poço 3-RJS-646 (Extensão de Tupi) - Área do PA do 1-RJS-628A, levando à
descoberta de óleo em 8 de agosto, com a conclusão da perfuração em 28 de setembro,
validando o modelo do pré-sal.
O presidente da República foi informado pela Petrobras do andamento das atividades desde a
primeira confirmação da existência de óleo no pré-sal, bem como do imenso impacto potencial
da descoberta. O governo foi alertado para a necessidade da mudança do modelo vigente.
Mesmo assim, o regime de concessões foi mantido e rodadas de licitação realizadas em 2006.
Só no fim de 2007, após uma longa luta, tendo de um lado setores da Petrobras, e de outro a
Casa Civil e a ANP, foram retirados dos leilões 41 blocos no entorno de Tupi. Foram mantidos,
porém, os do arco do Cabo Frio, na franja do pré-sal, arrematados por empresa nacional que,
meses antes, havia recrutado quadros da Petrobras que gerenciavam as informações
confidenciais do pré-sal. As consequências econômicas, estratégicas e políticas das
concessões sobre o pré-sal, em quatro rodadas do governo FHC e especialmente em cinco do
governo Lula ainda serão objeto de análises históricas, sob a perspectiva do interesse
nacional.
Há uma determinação fundamental que permitiu se chegar a esse expressivo potencial.
Embora não esteja totalmente quantificado, é estimado entre 30 bilhões e 130 bilhões (e até
mesmo 250 bilhões para os otimistas) de barris equivalentes de petróleo. Para ilustrar esta
grandeza, 130 bilhões de barris equivaleriam a dez vezes o que a Petrobras definiu, em termos
de petróleo extraível por meios convencionais, como reservas provadas, até este ano. A
posição do Brasil seria elevada a um patamar próximo das grandes reservas internacionais:
Iraque, Venezuela, Irã, Kuwait. Até mesmo da maior, a Arábia Saudita.
Diante do cenário atual, a estratégia adotada nos últimos anos pela Petrobras, de acelerar os
investimentos tendo em vista a perspectiva de exaustão definitiva dos recursos de petróleo
convencional no mundo, mostra-se acertada. Conhecimentos teóricos disponíveis permitem
estimar que ainda haja cerca de 2 trilhões de barris de petróleo convencional remanescentes. A
uma taxa de retirada de 85 milhões de barris por dia, ainda em crescimento, vão se exaurir nos
próximos 40 anos. Há ainda cerca de 5 ou 6 bilhões de barris adicionais de petróleos não
convencionais, de extração mais difícil e dispendiosa. Além disso, existem aproximadamente
no mundo 2 trilhões de barris equivalentes de petróleo sob a forma de gás natural.
O acerto da estratégia tem consistido em investir fortemente em produção e exploração no
Brasil e no exterior por haver uma tendência de valorização definitiva do petróleo nesse cenário
de pré-exaustão, apesar das restrições colocadas pela mudança climática. O gás natural já é
uma possibilidade adicional de gerar valor, pois cada 150 metros cúbicos de gás permitem a
substituição de 1 barril de petróleo. E há ainda o esforço no segmento dos biocombustíveis
para criar, desde já, uma alternativa à exaustão final do petróleo.
A estratégia é fruto de um trabalho histórico, de uma companhia cuja corporação possui, hoje,
75 mil pessoas. Seu grande patrimônio não é o petróleo encontrado, mas a capacidade de
encontrar petróleo, desenvolver petróleo, desenvolver gás natural, desenvolver soluções para a
inevitável nova transição energética, da era pós-petróleo, incluindo os biocombustíveis e outras
fontes renováveis. Este é o valor da Petrobras, fruto do esforço histórico do povo brasileiro que
acreditou nela, que lhe deu apoio quando foi ameaçada de privatização, quando a chamaram
de Petrobrax, em pleno auge do neoliberalismo dos anos 90.
E daqui para frente? Primeiro, é preciso separar a necessária capacitação de operação em
toda a cadeia das atividades petrolíferas, com as especificidades inerentes ao pré-sal. O centro
de excelência mundial para isso é a Petrobras.
Com essa retrospectiva e com o atual quadro mundial um conjunto de perguntas que precisam
ser respondidas e algumas decisões urgentes a serem tomadas: o petróleo do pré-sal é uma
jazida gigante única ou um arquipélago de grandes poços? Sem esse conhecimento, o risco de
conflito aumenta. Um concessionário pode sugar o petróleo de outro e mesmo degradar a
operação otimizada dos reservatórios.
A primeira decisão sobre os campos gigantes de petróleo do pré-sal deve ser a contratação da
Petrobras, que os descobriu, para avaliar toda a sua extensão, mediante um contrato com o
governo pelo custo do serviço. Petróleo é, cada vez mais, um recurso geopolítico. As grandes
reservas mundiais estão sob o controle dos Estados nacionais e de suas empresas estatais.
O açodamento na definição dos modelos de partilha pode estar mais ligado ao calendário
eleitoral do que ao aproveitamento dos recursos no interesse do povo brasileiro. Há um grave
precedente. A proposta de modelo do setor energético elaborado a partir das discussões do
Instituto Cidadania, em 2002, previa a apropriação social do excedente econômico,
principalmente por meio de usinas hidráulicas, muitas delas substancialmente amortizadas,
bem como a alteração do modelo para o petróleo, com a adoção do regime de contratos de
partilha, capaz de gerar mais excedentes sociais. Em 2005, o sistema de geração elétrica,
ainda estatal, vinha perdendo, por truques regulatórios, em benefício dos especuladores e
grandes consumidores do mercado livre, cerca de 5 bilhões de reais por ano. No petróleo,
poderá estar em jogo 1 bilhão por dia.
A outra questão, mais importante, é que o mecanismo de gestão estratégica definirá como
serão apropriados os -recursos decorrentes do excedente econômico. O modelo criado em
1997, e ainda vigente, previa um prêmio para quem corresse o risco exploratório. No pré-sal
não existe mais risco exploratório. O modelo atual não tem mais sentido. Se o petróleo é
nosso, ele deve ter a finalidade de permitir que sua riqueza resgate dívidas históricas e
possibilite a construção de um futuro para o País, baseado na modernização tecnológica e da
infraestrutura, na melhora da base educacional e científica, na proteção ambiental e em todo
um conjunto de ações estratégicas que venham a converter o Brasil num país diferente do que
ele é hoje.
O modelo sob o qual vai se dar a exploração desse petróleo tem de levar em conta essa
realidade. Se a organização que construiu essa riqueza, essa possibilidade, deve permanecer
no centro desse processo, isso pouco tem a ver com a operação industrial do setor de petróleo.
Há várias fórmulas possíveis que permitem atingir esses objetivos. Se a Petrobras e seu
sucesso são fruto de uma política de Estado, já há quase seis décadas, certamente os
recursos do pré-sal também devem ter sua destinação debatida em profundidade no
Congresso Nacional e na sociedade brasileira.
Hoje em dia, com a produção próxima a 2 milhões diários de barris, grande parte do excedente
econômico está sendo destinada a finalidades que não cumprem o objetivo de apoiar a
transformação nacional. Este quadro se tornará mais dramático quando a produção duplicar ou
triplicar em razão do pré-sal.
Em 2008 e 2007, respectivamente, as receitas da Petrobras, foram de 315 bilhões e 246
bilhões de reais. Abatidos os insumos adquiridos de terceiros, e as depreciações e
amortizações, o valor adicionado líquido gerado pelas operações foi de 141 bilhões e 127
bilhões de reais, respectivamente, assim distribuídos entre os stakeholders da Petrobras,
respectivamente: Pessoal, 14,5 bilhões e 14,2 bilhões; 2) Bancos (Juros e Aluguéis), 11 bilhões
e 16 bilhões; 3) Acionistas (lucros e dividendos) 30,1 bilhões e 23,3 bilhões. Mais de 60% do
valor adicionado das operações foi destinado à União, estados e municípios, sob a forma de
impostos, taxas, contribuições, royalties, participações especiais e outras: 85 bilhões em 2008
e 74 bilhões em 2007.
Portanto, mesmo no superado modelo atual, a maior parte do excedente econômico já vai para
os governos. Mas sem foco estrutural e estratégico quanto à destinação final. Não vai para os
acionistas, e, embora esta questão deva ser revista, mediante o aumento da participação do
governo na Petrobras, ela não é central. Mudando o regime de concessão para o de partilha da
produção e prestação de serviços, a repartição do excedente econômico poderá ser ajustada
de forma a manter a atualidade tecnológica e empresarial da Petrobras e acumular excedentes
requeridos para financiar o plano estratégico de desenvolvimento econômico e social do País,
a ser formulado.
Não faz sentido cogitar da criação de uma nova empresa para ter atuação industrial. A
capacitação não vem das intenções, mas da história e da cultura da empresa. Se a tal empresa
visa ter atuação meramente administrativa, de controle e contabilidade, será uma substituta
parcial da ANP, cujo papel de qualquer forma está também superado e precisa ser revisto. A
função de ditar o ritmo de exploração, conjugado com os planos de desenvolvimento, não pode
ficar a cargo de empresa ou departamento: é função estratégica de Estado. Uma nova
empresa para gerir o pré-sal corre o risco de se transformar em cavalariça de partilha. Em
todos os governos a Petrobras tem sofrido pressões. A força de resistência vem de sua cultura
e da sua história. Seus defeitos, quase todos estão vinculados aos processos de partilha de
cargos, que às vezes procuram transformar dirigentes em despachantes. Numa nova empresa
este risco político será muito maior.
O governo precisa recuperar o caráter do planejamento nacional em infraestrutura, educação,
saúde, proteção ambiental, ciência e tecnologia, para definir os volumes de investimentos
requeridos. O pré-sal poderá permitir a produção, adicional aos atuais 2 milhões diários do póssal,
de até 10 milhões diários, se as reservas forem superiores a 100 bilhões de barris,
conforme estimativas divulgadas. Nestas condições o excedente econômico anual poderá
superar os 250 bilhões de dólares, liquidamente disponível para financiar a construção
nacional.
Ildo Sauer é Ph.D. em Engenharia Nuclear e professor do Instituto de Eletrotécnica e Energia
da USP. Foi diretor de Gás e Energia da Petrobras (2003-2007)