quinta-feira, 10 de setembro de 2009

Pré-sal: Modelos errados
"Não faz sentido criar uma nova estatal para gerir o pré-sal.
Muito menos manter o regime de concessão onde não mais
existe o risco de exploração"
CARTA CAPITAL
28/08/2009
Por Ildo Sauer
Dois assuntos têm sido objeto de atenção da opinião pública: a CPI da Petrobras/ANP e a
reformulação da política energética nacional em decorrência dos recursos do pré-sal. Uma
retrospectiva histórica permite elucidar pontos essenciais que vinculam estas questões com um
novo projeto nacional.
A apropriação social da energia esteve no centro das duas grandes revoluções sociais pelas
quais a humanidade passou. A revolução agrícola, ocorrida há cerca de dez milênios, guarda
forte vínculo com a apropriação da fotossíntese e do ciclo hidrológico, movidos pelo Sol, para a
seleção e cultivo das plantas e domesticação de animais, em torno dos quais se deu a ruptura
na forma de suprir as necessidades da existência humana pela agricultura em vez da caça e da
coleta.
Uma nova ruptura, vinculada à Revolução Industrial, em sua primeira fase, no século XVIII,
esteve associada à apropriação da energia do carvão. Na segunda fase, no século XIX, com
aprofundamento deste processo, mediante a apropriação adicional dos recursos do petróleo,
dos potenciais hidráulicos, no âmbito dos nascentes complexos industriais da eletricidade, das
telecomunicações, da indústria automotiva e petrolífera, todos associados ao sistema
financeiro.
A percepção do papel da apropriação social da energia, especialmente do petróleo e da
indústria elétrica, nos processos de transformação social, induzidos pela industrialização e
urbanização, esteve no cerne da luta dos brasileiros, nas décadas de 1940 e 1950, que
conduziram ao monopólio estatal do petróleo e à criação da Petrobras, da Eletrobrás, da
Telebrás, do BNDE e da CSN como instrumentos indispensáveis para a possibilidade material
de transformação da sociedade agrário-mercantil em outra. Nos anos 40/50, percebendo a
importância que passaria a ter o domínio da energia para o processo de modernização
produtiva, nasceu a campanha “O petróleo é nosso”. Na esteira desse movimento criou-se a
Petrobras.
A missão da Petrobras em sua primeira fase, nos anos 50-70, foi garantir que todas as regiões
do País tivessem acesso aos derivados do petróleo, um fator essencial à modernização das
condições de vida. Foi criada com o desafio de encontrar petróleo e abastecer o mercado
interno. A produção nacional não atingia 1,6% do nosso consumo. A companhia intensificou a
exploração e trabalhou na formação e especialização de seu corpo técnico. Tomou-se a
decisão de ampliar o setor de refino existente com o objetivo de reduzir os custos de
importação dos derivados de petróleo. A Petrobras cumpriu essa tarefa. E esse petróleo veio
do exterior. No esforço de garantir o suprimento, a empresa passou a desenvolver atividades
fora do Brasil e descobriu, no período, o maior campo petrolífero do Iraque, chamado de
Majnoon (o Maluco) dada a sua enormidade (que foi, todavia, nacionalizado).
Com o primeiro choque do petróleo em 1973 e o segundo, em 1979, criou-se uma nova
situação, na qual a economia mundial entrou em crise. O paradigma keynesiano de intervenção
estatal definida, forte, entrou em crise também, pois as taxas de acumulação do capital se
reduziram drasticamente. Países como o Brasil, que tinham embarcado em um projeto de
desenvolvimento acelerado, aprovisionado com financiamento externo, viram-se duplamente
ameaçados: pela conta petróleo, extremamente alta, e pela inflação internacional combinada
com as altas taxas de juro decorrentes da crise americana dos anos 1980. Essas condições
levaram o Brasil a um novo limiar e a Petrobras é solicitada a uma nova missão. Diante da
crise, no Brasil a estratégia teve de mudar: a meta passou a ser atingir a autossuficiência.
Não encontrando petróleo em terra, a Petrobras, para assegurar sua missão de redução da
dependência energética, migra para o mar. Em 1968 haviam sido iniciadas as atividades de
prospecção offshore, no recém-descoberto campo de Guaricema, Sergipe. Em 1974
encontrou-se a bacia que é, até o momento, a maior produtora do Brasil, Campos. A área
inicial foi Garoupa, seguida pelos campos gigantes de Marlim, Albacora, Barra--cu-da- e
Roncador. É nesta fase que se desenvolve a tecnologia de exploração em águas profundas e
ultraprofundas.
Progressivamente, da exploração em lâminas de água de poucas dezenas de metros, passa-se
para centenas e, mais adiante, para mil, 2 mil e hoje, profundidades próximas a 3 mil metros. E
assim o Brasil alcança a autossuficiência em 2006.
A autossuficiência permitiu a estabilidade macroeconômica do País, mesmo recentemente,
quando o preço de petróleo superou os 100 dólares. A capacitação na área de exploração,
desenvolvimento, produção, gestão, associada à interação com grandes organizações
mundiais de ponta, permitiram à Petrobras testar um modelo geológico, desenvolvido ao longo
de décadas, que previa a possibilidade da existência de um segundo andar de petróleo, abaixo
do primeiro, que permitiria essa autossuficiência.
Era possível que as anomalias que ficaram registradas nas investigações geo-físicas
representassem mais petróleo. A oportunidade apresentou-se quando a perfuração no poço 1-
RJS-628A (Tupi), do bloco BM-S-11, adquirido no BID 2: em 14 de setembro de 2000, cuja
perfuração iniciada em 30 de setembro de 2005 foi concluída em 13 de agosto daquele ano
sem sucesso no pós-sal. Foi tomada a decisão de promover uma reentrada, em 2 de maio de
2006, com o objetivo no pré-sal, levando à notificação da descoberta de óleo, em 10 de julho,
com a conclusão da reentrada em 12 de outubro. Em 7 de maio de 2007 foi iniciada a
perfuração do poço 3-RJS-646 (Extensão de Tupi) - Área do PA do 1-RJS-628A, levando à
descoberta de óleo em 8 de agosto, com a conclusão da perfuração em 28 de setembro,
validando o modelo do pré-sal.
O presidente da República foi informado pela Petrobras do andamento das atividades desde a
primeira confirmação da existência de óleo no pré-sal, bem como do imenso impacto potencial
da descoberta. O governo foi alertado para a necessidade da mudança do modelo vigente.
Mesmo assim, o regime de concessões foi mantido e rodadas de licitação realizadas em 2006.
Só no fim de 2007, após uma longa luta, tendo de um lado setores da Petrobras, e de outro a
Casa Civil e a ANP, foram retirados dos leilões 41 blocos no entorno de Tupi. Foram mantidos,
porém, os do arco do Cabo Frio, na franja do pré-sal, arrematados por empresa nacional que,
meses antes, havia recrutado quadros da Petrobras que gerenciavam as informações
confidenciais do pré-sal. As consequências econômicas, estratégicas e políticas das
concessões sobre o pré-sal, em quatro rodadas do governo FHC e especialmente em cinco do
governo Lula ainda serão objeto de análises históricas, sob a perspectiva do interesse
nacional.
Há uma determinação fundamental que permitiu se chegar a esse expressivo potencial.
Embora não esteja totalmente quantificado, é estimado entre 30 bilhões e 130 bilhões (e até
mesmo 250 bilhões para os otimistas) de barris equivalentes de petróleo. Para ilustrar esta
grandeza, 130 bilhões de barris equivaleriam a dez vezes o que a Petrobras definiu, em termos
de petróleo extraível por meios convencionais, como reservas provadas, até este ano. A
posição do Brasil seria elevada a um patamar próximo das grandes reservas internacionais:
Iraque, Venezuela, Irã, Kuwait. Até mesmo da maior, a Arábia Saudita.
Diante do cenário atual, a estratégia adotada nos últimos anos pela Petrobras, de acelerar os
investimentos tendo em vista a perspectiva de exaustão definitiva dos recursos de petróleo
convencional no mundo, mostra-se acertada. Conhecimentos teóricos disponíveis permitem
estimar que ainda haja cerca de 2 trilhões de barris de petróleo convencional remanescentes. A
uma taxa de retirada de 85 milhões de barris por dia, ainda em crescimento, vão se exaurir nos
próximos 40 anos. Há ainda cerca de 5 ou 6 bilhões de barris adicionais de petróleos não
convencionais, de extração mais difícil e dispendiosa. Além disso, existem aproximadamente
no mundo 2 trilhões de barris equivalentes de petróleo sob a forma de gás natural.
O acerto da estratégia tem consistido em investir fortemente em produção e exploração no
Brasil e no exterior por haver uma tendência de valorização definitiva do petróleo nesse cenário
de pré-exaustão, apesar das restrições colocadas pela mudança climática. O gás natural já é
uma possibilidade adicional de gerar valor, pois cada 150 metros cúbicos de gás permitem a
substituição de 1 barril de petróleo. E há ainda o esforço no segmento dos biocombustíveis
para criar, desde já, uma alternativa à exaustão final do petróleo.
A estratégia é fruto de um trabalho histórico, de uma companhia cuja corporação possui, hoje,
75 mil pessoas. Seu grande patrimônio não é o petróleo encontrado, mas a capacidade de
encontrar petróleo, desenvolver petróleo, desenvolver gás natural, desenvolver soluções para a
inevitável nova transição energética, da era pós-petróleo, incluindo os biocombustíveis e outras
fontes renováveis. Este é o valor da Petrobras, fruto do esforço histórico do povo brasileiro que
acreditou nela, que lhe deu apoio quando foi ameaçada de privatização, quando a chamaram
de Petrobrax, em pleno auge do neoliberalismo dos anos 90.
E daqui para frente? Primeiro, é preciso separar a necessária capacitação de operação em
toda a cadeia das atividades petrolíferas, com as especificidades inerentes ao pré-sal. O centro
de excelência mundial para isso é a Petrobras.
Com essa retrospectiva e com o atual quadro mundial um conjunto de perguntas que precisam
ser respondidas e algumas decisões urgentes a serem tomadas: o petróleo do pré-sal é uma
jazida gigante única ou um arquipélago de grandes poços? Sem esse conhecimento, o risco de
conflito aumenta. Um concessionário pode sugar o petróleo de outro e mesmo degradar a
operação otimizada dos reservatórios.
A primeira decisão sobre os campos gigantes de petróleo do pré-sal deve ser a contratação da
Petrobras, que os descobriu, para avaliar toda a sua extensão, mediante um contrato com o
governo pelo custo do serviço. Petróleo é, cada vez mais, um recurso geopolítico. As grandes
reservas mundiais estão sob o controle dos Estados nacionais e de suas empresas estatais.
O açodamento na definição dos modelos de partilha pode estar mais ligado ao calendário
eleitoral do que ao aproveitamento dos recursos no interesse do povo brasileiro. Há um grave
precedente. A proposta de modelo do setor energético elaborado a partir das discussões do
Instituto Cidadania, em 2002, previa a apropriação social do excedente econômico,
principalmente por meio de usinas hidráulicas, muitas delas substancialmente amortizadas,
bem como a alteração do modelo para o petróleo, com a adoção do regime de contratos de
partilha, capaz de gerar mais excedentes sociais. Em 2005, o sistema de geração elétrica,
ainda estatal, vinha perdendo, por truques regulatórios, em benefício dos especuladores e
grandes consumidores do mercado livre, cerca de 5 bilhões de reais por ano. No petróleo,
poderá estar em jogo 1 bilhão por dia.
A outra questão, mais importante, é que o mecanismo de gestão estratégica definirá como
serão apropriados os -recursos decorrentes do excedente econômico. O modelo criado em
1997, e ainda vigente, previa um prêmio para quem corresse o risco exploratório. No pré-sal
não existe mais risco exploratório. O modelo atual não tem mais sentido. Se o petróleo é
nosso, ele deve ter a finalidade de permitir que sua riqueza resgate dívidas históricas e
possibilite a construção de um futuro para o País, baseado na modernização tecnológica e da
infraestrutura, na melhora da base educacional e científica, na proteção ambiental e em todo
um conjunto de ações estratégicas que venham a converter o Brasil num país diferente do que
ele é hoje.
O modelo sob o qual vai se dar a exploração desse petróleo tem de levar em conta essa
realidade. Se a organização que construiu essa riqueza, essa possibilidade, deve permanecer
no centro desse processo, isso pouco tem a ver com a operação industrial do setor de petróleo.
Há várias fórmulas possíveis que permitem atingir esses objetivos. Se a Petrobras e seu
sucesso são fruto de uma política de Estado, já há quase seis décadas, certamente os
recursos do pré-sal também devem ter sua destinação debatida em profundidade no
Congresso Nacional e na sociedade brasileira.
Hoje em dia, com a produção próxima a 2 milhões diários de barris, grande parte do excedente
econômico está sendo destinada a finalidades que não cumprem o objetivo de apoiar a
transformação nacional. Este quadro se tornará mais dramático quando a produção duplicar ou
triplicar em razão do pré-sal.
Em 2008 e 2007, respectivamente, as receitas da Petrobras, foram de 315 bilhões e 246
bilhões de reais. Abatidos os insumos adquiridos de terceiros, e as depreciações e
amortizações, o valor adicionado líquido gerado pelas operações foi de 141 bilhões e 127
bilhões de reais, respectivamente, assim distribuídos entre os stakeholders da Petrobras,
respectivamente: Pessoal, 14,5 bilhões e 14,2 bilhões; 2) Bancos (Juros e Aluguéis), 11 bilhões
e 16 bilhões; 3) Acionistas (lucros e dividendos) 30,1 bilhões e 23,3 bilhões. Mais de 60% do
valor adicionado das operações foi destinado à União, estados e municípios, sob a forma de
impostos, taxas, contribuições, royalties, participações especiais e outras: 85 bilhões em 2008
e 74 bilhões em 2007.
Portanto, mesmo no superado modelo atual, a maior parte do excedente econômico já vai para
os governos. Mas sem foco estrutural e estratégico quanto à destinação final. Não vai para os
acionistas, e, embora esta questão deva ser revista, mediante o aumento da participação do
governo na Petrobras, ela não é central. Mudando o regime de concessão para o de partilha da
produção e prestação de serviços, a repartição do excedente econômico poderá ser ajustada
de forma a manter a atualidade tecnológica e empresarial da Petrobras e acumular excedentes
requeridos para financiar o plano estratégico de desenvolvimento econômico e social do País,
a ser formulado.
Não faz sentido cogitar da criação de uma nova empresa para ter atuação industrial. A
capacitação não vem das intenções, mas da história e da cultura da empresa. Se a tal empresa
visa ter atuação meramente administrativa, de controle e contabilidade, será uma substituta
parcial da ANP, cujo papel de qualquer forma está também superado e precisa ser revisto. A
função de ditar o ritmo de exploração, conjugado com os planos de desenvolvimento, não pode
ficar a cargo de empresa ou departamento: é função estratégica de Estado. Uma nova
empresa para gerir o pré-sal corre o risco de se transformar em cavalariça de partilha. Em
todos os governos a Petrobras tem sofrido pressões. A força de resistência vem de sua cultura
e da sua história. Seus defeitos, quase todos estão vinculados aos processos de partilha de
cargos, que às vezes procuram transformar dirigentes em despachantes. Numa nova empresa
este risco político será muito maior.
O governo precisa recuperar o caráter do planejamento nacional em infraestrutura, educação,
saúde, proteção ambiental, ciência e tecnologia, para definir os volumes de investimentos
requeridos. O pré-sal poderá permitir a produção, adicional aos atuais 2 milhões diários do póssal,
de até 10 milhões diários, se as reservas forem superiores a 100 bilhões de barris,
conforme estimativas divulgadas. Nestas condições o excedente econômico anual poderá
superar os 250 bilhões de dólares, liquidamente disponível para financiar a construção
nacional.
Ildo Sauer é Ph.D. em Engenharia Nuclear e professor do Instituto de Eletrotécnica e Energia
da USP. Foi diretor de Gás e Energia da Petrobras (2003-2007)

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